os homens-bons do XXI

ainda depois de dois anos a viver na invicta, não havia nada que me puxasse para esse lado da cidade. mas há de se fazer casa e criar intimidade com as projeções de uma vida aqui, ainda que sem muito tempo.
eu demorei a me aproximar,  a manhã não me cai muito bem e aquele dia claro no meu rosto deixava evidentes as marcas de noites mal dormidas na mesma proporção que deixou ver as marcas de humidade nessa torre.
chego perto e sou tomada pelos cinzentos contrastes da nuvem que vinha e da casa vinte e quatro. em 1995 ainda faltava um ano pra eu nascer, mas de certeza lá estava fernando, sentado horas a fio sob a mesa de desenho, a tentar fazer percebida a transgressão que foi aquela ruína que já ninguém vivo na altura tivera visto.
ouvi dizer que o ano era 1875 e teve um fogaréu danado, sobrou-se só ao próprio abandono
mas se escutar direito, essas paredes falam em alto e bom tom.

        - pss. 
          aqui!
-aqui no frio dessa minha sombra, eu já vi dezenas de homens-bons. eu aqui sou pedra velha: já queimei, molhei, e séculos a fio a lidar com as gaivotas, que não deixam-me em paz, nunca! agora já os homens-bons, onde é que andam?
fiz uma lista mental de todas as boas pessoas que já conheci, claramente sem entender do que se tratava:
    
    -e o que é que são esses homens todos?
    -faziam de tudo, de tudo tinham e em (quase) tudo mandavam. se calhar estes vidros todos ainda  voltam a refleti-los por aí.
    -mas homens bons em pleno século XXI? -um google rápido e logo percebi quem eram e quais eram os seus (24, afinal) ofícios.

e a torre responde-me, 
em meio a sua disruptura, 
ao incômodo que foi -e que é-
e a par da sua significância: 
-é que eu ouvi dizer que o futuro é também medieval.