Em tempos assim, quando chega a primavera e a cidade permite alguns dias de sol e uma temperatura para além dos dezoito graus, coloco-me a cuidar de todas as pequenas coisas da casa que foram acumulando-se com o frio. Os cantos superiores da marquise, as terras antigas dos vasos das plantas, as manchas de chuva e poluição secas no vidro da janela, as roupas de praia nos fundos das gavetas e o mau humor arrastado têm, então, a minha atenção.
           Nessas grandes limpezas e organizações entre estações os móveis saem do lugar, algumas roupas vão para doação e alguns documentos que considerava imprescindíveis já não têm validade para atestar minha existência, então recorto-os e deito-os como enigmas desinteressantes ao lixo. Penso que, em nível ou outro, poderia falsificar-me sem qualquer precedente, arranjar outras maneiras de estar no mundo que tivessem a discrepância exata para não me aparentar mais e ser reconhecida mesmo assim. Curiosamente, o meu cartão cidadão viaja sem mim, mas eu não cruzo uma fronteira sem ele.
           De todas as tarefas, lavar a loiça e passar pano nas prateleiras são as que mais me aborrecem. Apesar de estar consciente sobre vivermos uma vida de acúmulos, pratos e talheres são um cotidiano que evito amontoar na bancada. Mas, às vezes, acontece e a pilha de loiças parece imbatível. Resisto ao ato de jogá-las todas ao chão pelo simples prazer de ver ruir algo que não quero fazer. E há tantas coisas que gostaria de ver ruir, tantas outras que não queria fazer.
           As prateleiras carregam para além da poeira uma diversidade de objetos que atestam os meus gostos, minhas memórias e o lembrete -nunca solicitado- de uma faculdade que não termino. Meus gostos são baratos, porque a crise é full-time. Minhas memórias são acessíveis, porque ainda não pago para recordar os meus motivos. E as folhas, as canetas ansiosamente mordidas e os rascunhos que já não identifico a serventia costumam ser as coisas mais caras nas prateleiras.
           Ensinaram-me que esta profissão é assim, dura. De um custo excepcional, uma dedicação quase-exclusiva, mas só quase, porque ainda não inventaram jeitos fisiológicos de não dormir. Um infindável esforço em páginas e mais páginas de formalismo puro e rasteiro. Resisto não como quem ignora a todos os pressupostos, mas como quem entende que, por trás de cada estrela, há milhares de pessoas como eu: com um ordenado mínimo na conta, infiltrações no tecto, computador próprio, experiência mínima de cinco anos e domínio em fotoredenrização (preferencial/diferencial). Uma vida a diferenciar-nos por requisitos preferenciais de capacidade produtiva, podem anotar.
           A ler-me assim depressa, parece que lido com uma frustração tamanha: ou por falta de talento, ou por falta de esforço, ou por falta de treino, ou até mesmo por falta de contacto ou sobrenome. Eu tenho sim muitas frustrações, mas nenhuma apontada para a carência de favoritismos, ou para a falta de holofotes, ou para a probabilidade de adentrar qualquer sistema de reconhecimentos e premiações. Como a pilha de loiça, a estrutura acadêmica e profissional parece-me imbatível e apetecia-me muito vê-la ruir. Escolho, quase sempre por cansaço, arrumar a bancada da cozinha. E escolho, quase sempre por exaustão, continuar nesses lugares todos, porque apesar de todas as raivas, essa bolha que é a arquitetura me é um hábito amansado.
           A obrigação da entrega (que é sempre adiada) e da presença (que quase nunca é participativa), vem sempre acompanhada de pequenas condições preferenciais, quase sempre não mencionadas e integralmente condescendentes: evite as tréplicas, a sua experiência não importa tanto assim para rebater às críticas; levante as mãos para concordar, em especial se a concordância é bibliográfica da personagem à sua frente; evite estatutos e, se possível, atropele-os: a paridade entre discentes é pura -e entre docentes, também.
           Muito dos afetos que desenvolvi com as pequenas tarefas aborrecidas da casa, desenvolvi também com os aborrecimentos do meio acadêmico e profissional. A dada altura apercebi-me de que passar pano em algumas prateleiras pode não resolver a urgência de deitar fora alguns objetos e que algumas prateleiras precisam estruturar-se em outros cantos da casa ou, até, em outras casas. Com a mesma naturalidade que inexisto sob a perspectiva de um documento fora do prazo de validade, permito que esses pequenos objetos perpetuem alguns absurdos. Permitimos, com muito afinco, diria até.
           Nada verdadeiramente emancipatório surgiu retido na ideia de que há uma ordem natural de todas as coisas. O espaço acadêmico, para além de me ser um recesso, é também um intermédio da minha relação com o mundo e, como qualquer processo, quando deixa de ser útil ou viável, é que mostra-me os horrores aos quais não estava atenta. Quase como uma tecla que deixa de funcionar e me faz perceber que, afinal, há um teclado entre mim e o mundo. Há um senso comum entre nós e o mundo e já iremos lá chegar.
            Podem acusar livremente as minhas frustrações, mas para a grande maioria de nós a violência de ser constantemente invalidado por pequenos-poderes é encoberta pela promessa de uma prática transformadora e de uma autoria individual através, ainda, de uma propaganda dissimulada. Não há autoria individual numa prática que é imprescindivelmente concebida pelo colectivo, não há arquitetura transformadora que parta de mãos que oprimem. A propaganda, entretanto, tenho de tirar meu chapéu: custa-nos uma licenciatura e uns quebrados para percebermos que aplicamos para algo que, talvez, não estamos assim tão de acordo. Que, talvez, sacrificar a nossa saúde e a dos nossos colegas custará imenso daqui a dez anos. Para alguns de nós, já custa.
           É importante alertar que não somos nenhum estado de exceção, o desmonte de uma estrutura que nos alimenta de grandes alívios ordinariamente chamados de satisfações se torna necessário quando a exaustão não é um desvio individual, mas sim um sintoma colectivo. É preciso dar nome a todos esses objetos nas prateleiras, é preciso lembrar que resistir é sublinhar que jogamos perdendo em um tabuleiro confuso e autoritário, capaz de reter nossas vivências em prescrições e outras propinas. É preciso escolher conscientemente de que pratos comemos, de que copos bebemos e quais talheres usamos. É preciso, ainda, ir além das resistências.
           Há quem irá apontar ingenuidade da minha parte, há quem irá dizer que é muita abstração, porque, afinal, fomos educados a fugir dos afetos que colocam em xeque as nossas discordâncias. Fomos educados a fugir dos afetos, ponto.  É horrível estar exposto ao mundo em erro, nós sabemos. Entretanto, não são abstratos os choros, os cansaços, as pressas e as desistências dos meus colegas e, certamente, não é ingênuo o cerco que se fecha sobre nós cada vez que uma sala de aula seleciona quem é válido e quem não é.
           O ato de chamar às coisas aquilo que verdadeiramente são é exaustivo: não há processos seletivos, há exclusões. Não há scores, há mercado. Não há meritocracia, há privilégios. A hegemonia dessa gestão empresarial de mau gosto do ensino superior facilmente se deixa entender como senso comum e isenta de ideologias. A neutralidade dos pequenos-poderes académicos é só um precedente para que qualquer colocação crítica possa ser qualificada como um exagero, um constrangimento desnecessário ou, até, uma falta de expertise. Cooptar-nos contra nós mesmos é a melhor isenção de sempre, vejam bem.
           E não é preciso bibliografia [mas deixarei ao final deste texto, na mesma] para poder afirmar que resistir é tornar visível todos os nossos desamparos, fazer com que circulem em alto e bom tom. É aceitar que a construção de uma prática pedagógica autônoma, inclusiva e atenta às nossas singularidades é um esforço descomunal, mas que precisa ser feito e precisa ser feito em conjunto, sem medo do choque das nossas diferenças e experiências.
           Resistir é passar pelo abandono da esperança e do medo. A primeira, porque implica na existência da segunda em outras temporalidades de expectativa e valida um modo passivo de interação com a realidade; e a segunda, porque é a maior potência produtiva da nossa escola e da nossa profissão. É urgente tornar centrais outros afetos e outras maneiras de estar.
           Ensinaram-me, então, que esta profissão é assim, dura. Duro, digo eu, é sobreviver neste mundo cão. E se pensam que o mundo não suportaria outros moldes, que estas salas de aula não admitiriam outras regras, que esta faculdade tem fundamentos essenciais e intransponíveis e que esta profissão não sustentaria qualquer outra prática que não essa baseada na contínua e velada dominação, é porque essa tal ordem natural das coisas vos favorece. E é precisamente a vocês a quem resisto: não é isto que quero ter nas minhas prateleiras, nem nas minhas bancadas e muito menos nas minhas memórias.
           Como bem colocou Graeber, o mundo é algo que fazemos e que poderíamos facilmente fazer diferente. Em meio a muitos constrangimentos necessários e situações aborrecidas, os materiais na prateleira não são caros só nos recibos, custam, porque a resistência que denunciam caminha em oposição à validação dessa máquina educacional-mercantil. Pergunto-me frequentemente se queremos tanto assim ser reconhecidos por uma estrutura que nos deixa no limiar de um total descuido. Penso que não, mas em nada me comovem as nossas defensivas em querer, no mais íntimo de nós, que sim. Eu também me defenderia -e me defendi anos a fio- se tivessem me ensinado a vida toda que o outro é sempre uma ameaça em potencial.
           Criar um estado constante de insegurança, suspeita e instabilidade entre discentes permite a maior das violências: usar a escola e a prática profissional de muleta para repetir todos esses pequenos-poderes e realizar o sonho latente de cometer as mesmas atrocidades não-ideológicas com o precedente de que ‘se eu sofri, você sofrerá também’. Essa tal neutralidade permite não só a reciclagem dessas supostas soberanias -que chegam por convites e outras formalidades ambíguas-, como também confere ao mal-estar, à culpa, ao cansaço e aos alívios os únicos meios institucionalmente legítimos de aprender. E sei que estamos muitos de nós neste texto, principalmente neste parágrafo.
           Acabar este curso será, algum dia, um alívio. Permanecer em exageros e resistências é, e será sempre, uma satisfação. Termino este texto com um dos vários abraços escritos por Eduardo Galeano em 1989, que diz:

“O poder burocrático, diz o autor [Arkadi Rajkin], faz com
que os atos, as palavras e os pensamentos jamais se encontrem: os atos ficam no local de trabalho, as palavras nas reuniões e os pensamentos no travesseiro.
Boa parte da força de Che Guevara, penso, essa misteriosa energia que vai muito além de sua morte e de seus equívocos, vem de um fato muito simples: ele foi um raro exemplo dos que dizem o que pensam e fazem o que dizem.”
(tradução de Eric Nepomuceno)
bibliografia
BUCKLAND, Michael. Information and Society. The M.I.T Press Essential Knowledge Series. 1. M.I.T. Press, Cambridge, Massachusetts, 2017.
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FERRO, Sérgio. Arquitetura e trabalho livre. Coleção Face Norte, volume 09. São Paulo, Cosac Naify, 2006.
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários a prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2004
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GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Trad. Eric Nepomuceno. 9ª. Edição, Porto Alegre: L&PM, 2002.
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GRAEBER, David. The Utopia of Rules: On technology, Stupidity, and the secret Joys of Bureaucracy. Melville House Publishing, Londres, 2015.
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HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução: Marcelo Brandão Cipolla. 2ª Ed. São Paulo:
Editora Martins Fontes, 2017
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MAIA, Heribaldo. Neoliberalismo e o sofrimento psíquico: o mal-estar nas universidades. Ed. Ruptura. Recife, Brasil, 2022
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SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: Corpos políticos, desamparo e o fifim do indivíduo. São Paulo: CosacNaify, 2015