Não sei exatamente com que idade é que chego aos vinte e sete. Tenho poucas certezas e continuo sempre em meio a grandes desacertos. Fui a campo em todos os jogos que me vieram ao encontro, mas as conquistas -se é que lá foram- nunca se deram atraentes e as derrotas estiveram sempre nos holofotes de quem me vive. Essa pessoa que me vive às vezes me é, mas nem sempre eu me sou.
Dessa idade toda que hora comemora meio centenário, hora não fecha uma dezena de translações em torno do sol, vivi a maior parte dentro da minha própria cabeça, e os outros poucos anos pingados a sofrer todas as dores de viver fora dela. Disse sempre, e com muita consideração, que me faltavam capacidades cognitivas para estar no mundo. Porque eu tentei -e tento- tantas e tantas formas de estar no mundo e, me parece, nunca estive verdadeiramente em nenhuma delas.
Há fotos, factos, argumentos e memórias embrulhadas em bobinas inteiras de plástico bolha que, de tão frágeis, tornam-se às vezes inacessíveis. Há em demasia comprovativos de que estive em muitos cantos fazendo muitas coisas. Entretanto, nada que consiga atestar a validade da minha tristeza sobre todas elas. Ao que parece, todos veem algo que não vejo, confiam em algo que não percebo, que nunca percebi.
Dos anos que disse que não chegaria e por todas as coisas que deixei sem terminar, porque terminar significaria abrir um buraco naquilo que sou, não sobrou muito, não. Raciono-me. Das várias formas que é possível esvair-se de algo, de alguém ou de algum lugar, a lentidão de tornar natural a falta é a mais eficaz. Eu, que sou a pessoa mais impaciente que conheço, de certo porque não posso conhecer a totalidade dos outros, acabo por ser a mim o meu próprio incidente. Apesar de me ser urgente desde sempre, nunca fui imprevisível. E, talvez, de todas as dores que as palavras não esgotam ao dizê-las -obrigada, bartolomeu-, esta é a mais latente: era possível deduzir-me.
Eu queria, então, que tivessem me pego pelas mãos: uma frase que me vem como oração desde que me entendo por gente ou, desde que atingi idade suficiente para racionalizar o desamparo, ainda que não saiba quantos anos essa idade tem. Um falso desejo de que alguém me puxasse de mim como quem acorda atrasado de manhã e arrebenta os quadris nas quinas dos móveis, deixa a torneira aberta e a porta destrancada. Uma vontade desarmada de ser puxada à superfície do corte sem precisar ser a linha, a agulha ou a precisão. E, acreditem, sou muito pouco precisa apesar de saber sempre onde dói.
Vivo, por isso, em contenção de danos, em pequenas permanências e quase-finais. Vivo a estender saideiras: há poucas garrafas mais caras e mais salgadas que a memória a debruçar-se sobre nós e perguntar-nos se estamos servidos. Não saberia dizer quantas taças já chorei. Nem quantas ruí.
Dessas maneiras todas de estar no mundo, nenhuma me domesticou. Me amansaram, deram-me de comer, destruíram alguns afetos e transformaram algumas dores. Deram-me fôlego para justificar todas as direções que apontei e a frustração necessária para me convencer dos contrários todos, quaisquer que fossem. Dormimos abraçadas: eu, essas maneiras todas e o caminhar agoniado da minha cabeça pelo mundo dividindo o intangível, os espaços apertados entre tudo que amo, desejo e odeio simultaneamente. Nós somos no singular.
Concluo, não porque é uma crença final, mas porque é um despacho assinado pela idade, que é preciso desconhecer-se para esquecer das dores. Escrevo com a dureza de quem se vê desfazer-se. É possível que tenha achado, em alívio, uma maneira de estar no mundo que não convém a ninguém: não estar. Essa vida, para mim, é uma experimentação de tudo que não sou, é um desacerto sem precedentes e sem finalidades. É uma saudade das idades que não tive e também das que não planejaria ter. Estes vinte e sete não me convém, não me prendem e não me são.
Tudo aquilo que podia ter sido arrancado de um refém, me fiz. De tanto tentar apoderar-me dos predicados, não sou. Descobri, então, que não ser é uma sentença em completude. Em íntegra, consumi todos os gostos e corri todos os atalhos. Deram todos em lugar nenhum. Um lugar ao qual a não estadia, curiosamente, pertence.
Autorizo-me um constante estado de estrangeira à minha própria vivência, documento-me. Chego aos vinte e sete feito uma senhora de seis anos: cansada demais para reivindicar todos os porquês do mundo, curiosa demais para viver fora dele. Chego em passeios anacrônicos, maravilhada por todas as implicações de ser em negativas e de ser em negações.