Chegava a notícia de que era possível o retorno. Fiz as malas e encontrei-a ao pé da cama com os pés a balançar. Fazia parecer que tudo estava sempre alto demais e reclamava com frequência que algumas casas não lhe serviam. Me perguntou por que é que meu cabelo estava curto e onde estavam as outras cores, que o preto e branco que vestia era muito chato. Contei-lhe do gosto amargo do mundo e lhe mostrei as migalhas que ficaram entre os dentes depois da refeição. Estávamos, ainda, famintas. Ofereci todos os pedaços dos quais me recordei e, num prato à parte, deixei todos os lugares difíceis de digerir. A visita deveria ser sempre uma escolha de dois lados e nisso nós sempre concordamos.
Vamos à janela e conto-lhe do som dos bem-te-vis e da saudade das araucárias, mas só lhe interessam os livros que nunca li, apesar de estarem na prateleira. Ela me mostra as cores das borboletas que lhe habitam o estômago e eu, para deixar-me também ser reconhecida, deixo-a escutar os grilos que foram ocupando a minha cabeça ao longo dos anos. Dividimos ali, a vocalizar a nossa música favorita, uma taquigrafia que só era possível a nós e aos pequenos bichinhos que nos povoavam.
Ela me conta das flores que pareciam estar bordadas nas louças da mãe, do gosto pelos espelhos e diz que quando me olha não consegue ver os limites, que pareço um esquisso improvável em lápis seis-bê. Mal ela sabe que nunca fui capaz de acabar um lápis sequer e que ainda hoje não soube escolher uma cor favorita para as minhas anotações.
Digo-a que há um preço que se paga por não entender algumas medidas, que em certa idade parecia-me que faltava um pouco para chegar lá e, anos depois, faltava um pouco mais. Ela me descreve todos os desvios, atalhos e todas as vezes em que o chão foi lava, mas que ainda assim sempre chegava atrasada e que, estranhamente, pouco se queimou. Me pergunta o porquê de todos os móveis da casa estarem fora do lugar e eu sorrio. Sorrio: essa dor nas costas um dia chega pra você, também. Explico que a casa tem vida sem nós, que quando saímos, as coisas se arrastam até os seus lugares favoritos para apanhar o sol das frestas que o vento faz por entre os tecidos das cortinas.
Ela vira-se novamente à cama, onde muitas vezes pulamos e jogamos travesseiros ao ar e confessa que adora a cantiga que a frequência cardíaca faz quando a gente brinca, mas que entende o meu cansaço. Diz que sou a paralisia para o seu frenesi. Não como quem contesta, mas sim como quem pega a última palavra para si, repito a minha verdade: -a tua inquietação é que me mantém andante.
Comento que a mudança de casa pouco interferiu nas constantes conversas apertadas na cozinha e ela implora para que eu derrube a parede entre nós e a sala. Em negativa, digo que o openspace camufla muito bem a crise da classe média e que a metragem quadrada da falta é a mais cara do mercado. A arquitetura tem dado respostas medíocres já há muito tempo.
Ela puxa da minha bolsa entreaberta uma fita métrica e me pergunta onde medir o que somos, digo que o tempo é ainda um bicho solto e que é o corpo a régua da maioria das coisas. Ela diz que calcula bem as quedas, que anda de bicicleta perto da relva macia e que usa boias no tobogã. Deixa claro dentro das suas próprias sutilezas que do chão, para já, não passa. Tento não me apegar ao pessimismo, mas não resisto em lembrá-la que cair em si não exigirá matemática e nem capacetes.
Falo sobre os cães, sobre os gatos, os pássaros e as plantas que foram preenchendo a paisagem de dentro e conto, feliz, que não somos alérgicas a nenhum deles. Que nunca fomos, na realidade, mas não custava conferir. Ela me abre os braços, se coloca abrigada no meu colo e diz: um dia te alcanço, um dia chego em você e te aceno de longe, só para ter o gosto amargo de te dizer “eu avisei.” Nós rimos, porque ela realmente me avisou. De quase todas as coisas.
Chegava a notícia de que era possível o retorno e então eu não pude fugir da criança que fui e ela também não me escapou. Falo baixinho sobre as casas que não me servem e que, hoje, percebo qualquer coisa sobre saudade, sobre as araucárias e sobre os livros que ficaram para sempre por ler. Hoje prefiro a cama baixa e os pés ao chão.